Por Alexandre Padilha
Em fevereiro de 2019 fiz uma crítica pública em meus perfis das redes sociais repercutindo reportagem da conceituada jornalista da saúde Lígia Fomenti (Estadão) sobre iniciativas do governo Bolsonaro que estimulavam internações em hospitais psiquiátricos isolados, inclusive de crianças e adolescentes, em detrimento de ampliação de serviços de saúde comunitários, compra de equipamentos de eletrochoque para eletroconvulsoterapia, abstinência como método terapêutico, em oposição a redução de danos.
Na minha opinião e de vários especialistas em saúde mental, tais iniciativas significam retrocesso na política nacional de saúde mental e um risco real ainda mais sob este governo e sua equipe atual em vários ministérios de retorno a várias práticas observadas historicamente nos manicômios brasileiros. Assim como eu, entidades e especialistas em saúde mental e o movimento da luta antimanicomial também se manifestaram.
Na publicação, usei a frase histórica usada por médicos, profissionais de saúde, pacientes e seus familiares, da luta contra os manicômios e suas atrocidades que diz “Loucura não prende, loucura não se tortura”.
Tais iniciativas do governo Bolsonaro significam, além da redução do crescimento de recursos para os serviços comunitários de saúde mental, uma inversão de investimentos direcionando-os para hospitais psiquiátricos isolados, seja com aumento de diárias, seja com compra de equipamentos de uso exclusivo em hospitais sem medidas de controle e fiscalização de uso. Após repercussão da polêmica e dos manifestos contrários, o próprio governo retirou do ar nota técnica que defendia as mudanças na política de saúde mental.
A partir dessa manifestação, conselheiros do Conselho Regional de Medicina do estado de São Paulo (Cremesp) decidiram por abrir este processo contra mim alegando que violei o Código de Ética Médica. Mesmo com minha defesa que escancarava o absurdo da tentativa de enquadrar a manifestação pública de um parlamentar contra uma política do governo Bolsonaro em violação da ética medica, o CRM/SP abriu o processo, onde tentam não só calar o médico, deputado federal e ex-ministro da saúde de fazer crítica a uma política do governo Bolsonaro, mas inibir a liberdade de outros médicos e todas as vozes que lutam por uma saúde mental humanizada e longe do ambiente manicomial.
Em virtude desse claro ato censura, a Câmara dos Deputados acionou o Supremo Tribunal Federal com uma ação para suspender este procedimento, em defesa das prerrogativas parlamentares e da liberdade do parlamentar em se manifestar em relação a críticas as políticas públicas.
Há mais de 30 anos a luta antimanicomial é um marco na defesa dos direitos humanos, que batalha por uma sociedade sem práticas manicomiais. Ao longo de anos uma verdadeira indústria do aprisionamento, da exclusão e dos maus tratos em relação ao transtorno mental foi desmontada.
No início dos anos 2000 mais de 80% dos recursos do Ministério da Saúde eram direcionados para hospitais psiquiátricos isolados e suas práticas manicomiais. Quando saí do Ministério da Saúde em 2014, após termos criado a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), esta curva havia se invertido, e mais de 80% dos recursos eram investidos em serviços não isolados, tendo dobrado o investimento em serviços comunitários.
É claro que na definição de uma política pública está em jogo não apenas uma visão de como cuidar das pessoas, mas também interesses financeiros de quem ganhou muito com uma rede de internações em hospitais psiquiátricos isolados e seus equipamentos. Esta rede se aproveita da fragilidade de mecanismos, de critério de uso de determinadas terapias e fiscalização para conviver com as práticas manicomiais.
A crítica a uma política pública do governo Bolsonaro não pode ser censurada. O Cremesp teve um papel importante na luta pela fiscalização e desmonte de práticas manicomiais, na denúncia e investigação da participação de médicos nos maus tratos ao transtorno mental e na tortura no Brasil. Espanta que agora busque cercear o direito de opinião de um médico e parlamentar sobre uma política pública.
Por isso, nós, defensores da democracia, da liberdade de expressão, de uma política de saúde mental humanizada, do fim dos maus tratos e práticas manicomiais em relação aos transtornos mentais, não nos calaremos. Recorreremos a todos os instrumentos que garantam o direito de opinião de um parlamentar para defender o direito constitucional de todos e todas que buscam a autonomia dos usuários do SUS, que respeite a história das lutas dos movimentos populares de saúde, dos profissionais e gestores que desmontam as práticas manicomiais.
Não seremos silenciados. É pelo direito a voz de todas e todos, sobretudo daqueles que em nome de uma certa visão sobre loucos e loucas, foram excluídos da sociedade, tiveram suas liberdades individuais desrespeitadas e viram uma rede integrada de cuidados ser destruída.